Para cada um que faz o bem
temos dois que fazem mal
Você não vê o lado bom? Na realidade o mundo não está tão mal, você só tem um problema de ótica
O Incrível.club traz uma reflexão poética sobre o amor e a iluminação pessoal.
«Aquele que já não ama é onipotente»,
costumava me dizer uma amiga, a Ruiva, e eu ainda não posso me sentir
cômoda nesta exagerada e enganosa sensação da leveza do ser: é como
se a gravidade e a resistência do ar estivessem debilitadas e apenas
ao cumprimentar alguém de longe você se elevasse meio metro do chão.
É como se antes houvesse um peso que lhe
deixava centrado e você sabia encontrar um meio termo como
um equilibrista. Agora, você está um pouco assombrado pela simplicidade
da vida e pelo fato de que já não está envolvido nela de modo algum.
Onde costumava doer, já não dói mais; e nesta cidade existe o costume de rever as feridas um do outro, não deixar que sarem e, se você está bem e não se queixa de nada, os que estão à sua volta perdem o interesse por você e se focam em outro sofredor;
é a única cidade das que conheço onde expressar com detalhes quão
cansado, esgotado e aborrecido você está significa mostrar o resultado
do seu trabalho.
Narrar divertidamente e com o brilho nos
seus olhos quão abandonado, fraco e miserável você está significa
convencer todo o mundo de que você é uma criatura extremamente delicada.
Ter uma lesão exótica e promove-la em cada esquina significa ter
sucesso. Parece que em nenhum lugar do mundo desfrutam tanto de seus
fracassos, suas separações e suas perdas como aqui. Em nenhum outro
lugar fazem culto a crimes, escândalos e desastres como onde você vive.
Os grandes sucessos e descobertas aqui são vistos como uma mentira
grandiosa e nada mais do que uma demagogia.
Suas pequenas vitórias, êxitos e sucessos brilham aqui como piadinhas durante um velório; sempre
fazem você se sentir incômodo, deixam você com vergonha, como aquele
cara no teatro, cujo celular toca atrevidamente no meio
de um espetáculo. É como se todo o ambiente que lhe rodeia estivesse
dizendo: «Vá embora daqui, e comemore seus êxitos se tiver vontade. Está
fazendo frio, os policiais fazem o que querem, há corrupção e o sol
dentro de um bilhão de anos vai esquentar tanto que todo o planeta Terra
vai se converter num Vale da Morte. Não há motivos para festejar
e já não queremos lhe ver mais». E você, obedientemente, concorda com
a cabeça e deixa de sorrir.
É por isso que nos últimos dez dias
me sentia decaída, mas não quero acreditar que tudo necessariamente
tenha de ser bobo e sem sentido. Acho que meio ano atrás na Índia,
me aconteceu o que as pessoas normais chamam de ’ter fé’. Pela primeira
vez na minha vida aclarei meus pensamentos e entendi algo sobre a morte,
Deus, a estrutura, o equilíbrio, a justiça e me senti envergonhada por
muitas palavras que disse. Foram anuladas automaticamente muitas
perguntas e agora sou uma fatalista, panteísta e otimista incorrigível,
porque, se você não pode ver nada de bom ao seu redor, não quer dizer
que o mundo esteja mal. Simplesmente significa que você pode ter
um problema de ótica e nada mais. O mundo está bem e também estará
depois de nós e por mais que queiramos, não podemos ’romper’.
Quando esta iluminação te atingir, você se sentirá pequeno e feliz; deixará de colecionar as coisas fanaticamente, deixará de ter medo e de se preocupar com as opiniões dos demais
(tudo isso literalmente vai passar: você já não se interessará por
comprar mais coisas, vai aguentar a dor mais fácil e nunca mais ficará
investigando o que é que pensam sobre você).
Coisas como a morte e os vermes sob
a terra já não vão lhe assustar; pessoas como os traidores deixarão
de ocupar sua mente e você começará a apreciar as pessoas não pelos seus salários ou sucesso no trabalho, mas pelos valores que trazem: você se perguntará se são felizes, se estão em paz com elas mesmas e se sabem tudo o que você sabe agora.
Você se tornará uma peça de um mosaico
colorido de tal escala que se sentirá incômodo por todas as bobeiras que
tenha cometido na sua adolescência; mal-estares infantis, como sentir
ciúmes, impor sua opinião a qualquer pessoa ou se ofender por falta
de atenção. Tudo isso deixará de lhe afetar (graças a Deus!),
as religiões se converterão numa espécie de convenção entre as pessoas,
numa forma de regularizar a sociedade, muito eficiente, com certeza;
as notícias que sua mãe vai lhe dizer serão tão engraçadas como
as profecias do fim do mundo em 1656; você se sentirá um pouco estranho
por não poder compartilhar seriamente as tristezas e os medos dos
outros. Ás vezes se sentirá como um personagem de Matrix naquele
episódio onde a matéria se decompõe nas colunas de zeros e cor verde.
No mundo tudo são padrões e ciclos e nada mais.
Mas, em geral, você se sentirá mais
calmo e mais inquieto ao mesmo tempo: por exemplo, antes você sabia que
podia se jogar de uma janela ou do sótão e terminar tudo num segundo,
mas agora você percebe que não pode terminar nada.
Pois bem, o que fazer? Para onde ir? Apaixonar lhe aterrissa. Você encontra um pequeno contato que lhe une a esta máquina gigante do universo. Quando
não existe tal contato, você se sente como um astronauta que
se despegou da nave espacial e está flutuando no espaço aberto: é belo,
sim, mas, diabos, está fazendo um frio!
Sim, e que frio...Quem escolhemos amar e por quê
De onde vem a risada de nervoso?
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