HORTA – RUBEM ALVES
Uma horta é uma festa para os cinco sentidos. Boa de cheirar,
ver, ouvir, tocar e comer. É coisa mágica, erótica, o cio da terra provocando o
cio dos homens.
Cheguei de viagem e antes de
entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas
também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das
chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou. Pode parecer
estranho, mas é pelo coração que me ligo à minha horta. Daí a alegria... Estranho
porque para muitos a relação acontece através da boca e do estômago. Horta como
o lugar onde crescem as coisas que, no momento próprio, viram saladas,
refogados, sopas e suflês. Também isso. Mas não só. Gosto dela, mesmo que não
tenha nada para colher. Ou melhor: há sempre o que colher, só que não pra
comer.
Semente, sêmen
Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando
a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta
nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da
mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre
ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina - seja criança, seja planta - é
uma sensaçao de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de
mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de
despertar o cio da terra.
Não é à toa que povos de tradições milenares ligavam a fertilidade da terra à
fertilidade dos homens e das mulheres. Faziam suas celebrações religiosas em
meio aos campos recém-semeados, para que o cio humano provocasse a inveja da
terra, e ela também se excitasse para o recebimento das sementes. O cio dos
homens provocando o cio da terra. Mas o inverso também é verdadeiro: o cio da
terra pode provocar o cio dos homens...
Cio é desejo intenso, não dá descanso, invade tudo e provoca sonhos, semente
que não se esquece do seu destino, vida querendo fertilizar e ser fertilizada,
para crescer. Pois a horta é assim também. Não é coisa só para boca. Se apossa
do corpo inteiro, entra pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, toma
conta da imaginação, invoca memórias...
Cheiração beatífica
Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz.
Os teólogos de outros tempos falavam da “visão beatífica de Deus”. Mas nunca
li, em nenhum deles, coisa alguma sobre “a cheiração beatífica de Deus”. Como
se fosse indigno que Deus tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos
narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso
corpo.
Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria
o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do
manjericão, do orégano, do coentro. Essa coisa indefinível, invisível, que
entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda
embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós,
emanação mágica por meio da qual nós o possuímos. Quem cheira fundo - e para
isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está
dizendo o quanto ama...
E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como
produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração
do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só
reconhece o comer como forma de apropriação do objeto. Os cheiros moram na
horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de
reconhecê-los. Há pessoas que se reúnem para ouvir música; outras pelo puro
prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes
de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa
horta, e ali nos deliciar com a sua perplexidade na medida em que lhes
oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: “Sabe o que é isto? Veja
como é gostoso...“
Olhares para a vida
Horta é coisa boa de se ver.
Dizem os poemas sagrados que Deus Todo-Poderoso, depois de criar todas as coisas,
parou, deixou cair os braços e foi invadido pelo puro deleite de ver a beleza
de tudo o que existia. Ver é experiência estética, não serve para coisa alguma.
Diferente do comer. Comer é útil. A mãe insiste com a criança: “Coma o
espinafre, meu bem, ele faz você ficar forte.” O “ficar forte” justifica
suportar o gosto ruim: é a utilidade da coisa.
Mas nada disso se pode dizer do ato de ver. Ver os espinafres, as couves, as
alfaces, os tomates não é útil para coisa alguma, não serve para nada. Mas faz
bem à alma. “Não só de pão viverá o homem”, diz o texto sagrado. Vivemos também
das coisas belas.
Há o belo das cores: o vermelho dos pimentões, das pimentinhas ardidas, dos
tomatinhos... Ah! Os tomatinhos... Falo daqueles pequenos, minúsculos, que não
se encontram em lugar civilizado, não se vendem em feiras (quanto poderiam
valer?). Mas eu os descobri numa velha fazenda, e não resisti à tentação de
trazer uma mudas. Sua maior utilidade, além de serem redondinhos e vermelhos, é
serem planta da minha infância. De modo que, na minha horta, eu tenho um
arbusto mágico, que me leva através do tempo, e, quando eu os apanho e os como,
sinto renascer dentro do meu corpo o corpo de um menino que mora nele.
Há o verde também dos pimentões, que se comprazem em brincar com as cores das
cebolinhas, das alfaces, das couves, dos espinafres, da salsa. O amarelo das
cenouras, e de novo dos pimentões (vocês já viram pimentões amarelos? São
raros, brilhantes, maravilhosos. Eu até tive uma árvore de Natal enfeitada só
com pimentões verdes, verrnelhos e amarelos). O roxo das beterrabas, dos
rabanetes, das berinjelas. O branco dos nabos.
E ao ver essa abundância de cores imagino que a natureza é brincalhona, ela se
compraz na exuberância e no excesso. E enquanto meus olhos vão andando pela
variedade das cores, coisas vão acontecendo dentro de mim. Porque isso
significa que elas existem dentro de mim. Se eu fosse cego para as cores, não
me aperceberia de nenhuma diferença. O objeto que vejo revela um objeto que
existe dentro de mim. Os olhos só vêem fora aquilo que já existe dentro como
desejo. Tenho também um pé de ora-pro-nóbis, coisa de gente pobre, em Minas
Gerais. Só vi referências a ele em dois lugares. Primeiro, no livro Fogão de
lenha, de Maria Stella Libânio Christo, como uma receita culinária no meio de
uma celebração de 300 anos de cozinha mineira, que vale pelo puro deleite de
ler. E depois num poema de Adélia Prado - ela sabe muito bem do encanto das
hortas. Ora-pro-nóbis, nome que parece responso litúrgico, é um arbusto que se
planta uma vez na vida. Ele é tão amigo que fica lá, soltando folhas sem parar.
Pois é: uma festa. Cores e formas, tudo diferente, natureza brincalhona,
artista, imaginação sem fim. Morangas gomosas; aboborões e abobrinhas; quiabos
escorregadios; berinjelas roxo-pretas, engraçadas em tudo, até no nome;
mandiocas carás de debaixo da terra; carás do ar, pendentes; inhames; chuchus;
nabos redondos; nabos fálicos; alcachofras; folhas de todos os desenhos;
alfaces; almeirão; acelgas; brócolis; couve; bertalha; repolhos brancos;
repolhos roxos; agrião; espinafre. Diante desse esbanjamento de inventividade o
jeito é o espanto, o riso e a gratidão de que este seja um mundo onde o enfado
é impossível.
Sons e toques
Horta também é coisa boa de se ouvir. Ora, direis, ouvir a horta... Plantas não
dizem nada, não cantam! Se fosse passarinho, ou o mar, ou as casuarinas, se
compreenderia. Mas a horta? Horta é coisa calma e silenciosa. E isso é bom.
Ouvir o silêncio.
As pessoas exigem sempre uma palavra. Têm medo de ficar quietas. Entram em
pânico quando o assunto acaba, começam a falar bobagens só por falar, porque é
melhor dizer besteira que ficar ali na presença do outro, sem nada dizer e sem
nada ouvir.
Com as plantas é diferente. Elas nos tranqüilizam. Se quisermos falar com elas,
tudo bem. Acho que gostam. Mas o melhor de tudo é que, ao falar com elas, não é
preciso fingir, porque as plantas são extremamente discretas. Guardam os
segredos com uma fidelidade vegetal...
E as hortas são também coisas boas de se tocar. Sentir o capim molhado, enfiar
a mão na terra... Se você tiver a felicidade rara de ter uma agüinha que
escorre e cai, você terá uma das experiências mais calmas que se pode ter.
Ouvir o barulhinho da água. Ele trará memórias ou fantasias de regatos
escondidos no meio do mato, correndo entre pedras, fazendo crescer o limo
verde. E aí você enfiará seus pés dentro dela. Difícil um prazer igual pela
tranqüilidade, pela pureza, pela profundidade. Porque a água nos reconduz às
nossas origens.
E a terra. Não, não é sujeira. Terra preta com esterco: ali a vida está
acontecendo, invisivelmente. Meu destino. Um dia serei terra, de mim a vida
poderá nascer de novo. As crianças, sem que ninguém as ensine, sabem dessas
coisas. Somos nós que dizemos que terra é sujeira, porque preferimos os
carpetes assépticos e mortos e os pisos vitrificados onde mão nenhuma pode
penetrar. Brincar com a terra, conquistar sua dureza, misturar o esterco
esfarelado, senti-la leve e solta, esguichar a água. Ali, diante dos nossos olhos,
uma metamorfose vai acontecendo, e a terra, de coisa estéril, dura, virgem, é
agora mulher em cio, pedindo as sementes. Vamos abrindo os sulcos, canteiros, e
neles colocamos a vida que o nosso desejo escolheu. Coisa gostosa. Estamos
muito próximos de nossas origens. Nossos pensamentos ficam diferentes. Deixam
de perambular pelos desertos de ansiedade e ficam cada vez mais próximos,
colados à mão, colados à terra. Os pensamentos fantasmas voltam ao aqui e ao
agora do corpo, passam a ser coisas amigas e alegres.
Segundo filósofos de outros tempos, tudo o que existe se reduz a quatro
elementos: a terra, a água, o vento e o fogo. E ali estamos nós, mãos na terra,
terra molhada, e a brisa sopra. Horta, pedaço de nós mesmos, mãe. Se
compreendermos que ela é não só a nossa origem como também nosso destino, e se
a amarmos, então estaremos amando a nós mesmos, como seremos. Não, não tenho
uma horta para economizar na feira. Tenho uma horta porque preciso dela, como
preciso de alguém a quem amo.
Sabores amigos
Há, por fim, o ato supremo de comer.
Comer: dizer que o que estava fora pode entrar, será bem recebido, eu o desejo,
tenho fome. Para isso examino o que ainda não conheço, pois todo cuidado é
pouco. Nem tudo é bom de se comer: há coisas de nojo e de vômito, venenosas e
de morte. Provo a coisa: primeiro a aparência, a cor, o cheiro e,
cuidadosamente, na ponta da língua, o gosto, para o veredito final - amigo ou
inimigo... É assim que a criança aprende sua primeira lição sobre o mundo,
mundo reduzido a coisas boas que devem ser engolidas e coisas más que devem ser
vomitadas. Assim nasceu a ética, na boca, pois é ela a primeira a dizer “é
bom”, “é mau”. E a sua sabedoria é imensa, pois o corpo é o grande juiz.
A horta é lugar de coisas boas para comer, ali onde se planta a amizade pelo
corpo, onde se plantam os objetos do nosso desejo, que nos fazem alegres quando
estão de fora e mais alegres ainda quando os colocamos na boca e dizemos: “Que
gostoso...\" Sem saber, estamos afirmando nossa solidariedade com a terra.
A horta é parte do meu corpo, do lado de fora, e é por isso que pode ser
comida, entrar para dentro, transformar-se em vida, minha vida. Eu dou vida à
horta, preparo a terra, planto as sementes, rego, elas vivem, e depois se
oferecem a mim, através do meu desejo.
E como elas são brincalhonas. Jiló amargo, careta pra quem não está acostumado;
o picante da pimenta; o duro amarelo adocicado da cenoura recém-arrancada da
terra; o estranho gosto dos nabos obscenos; as ervilhas, brincalhonas e
redondas; e a peça que os alhos e as cebolas nos pregam, fica o cheiro,
evidência do crime...
E nós tomamos os frutos da horta e os transformamos pelo poder alquímico do
fogo. Já disse dos quatro elementos dos sábios de outro tempo, terra, água, ar
e fogo. Sem o fogo só podemos juntar as coisas, do jeito como a terra nos deu.
Mas o fogo nos dá um outro poder, tudo fica diferente. Misturamos, alteramos,
inventamos. No peixe branco e pálido, o vermelho do urucum, extraído da
frutinha pelo poder do calor. vermelho pra excitar: na cor mora o quente.
Junta-se mais: a cebola, os pimentões verdes e vermelhos, o tomate, o coentro.
E a pimenta, magia estranha, ainda não entendi por que gosto dela. Talvez por
ser metáfora de certos amores que de tão ardentes viram ardume, e machucam. E
aí tudo junto, pelo poder do fogo, a moqueca, a horta transformada em
culinária, em gosto inventado.
Comer é ato complicado, há nele uma mistura de amor e de destruição. As
mandíbulas mastigando, infatigáveis, o movimento brusco da cabeça para frente e
para baixo, boca aberta, para abocanhar o naco que o garfo espetou, as
bochechas estufadas de comida. O ato de comer é como os sonhos - pode ser
psicanalisado, porque revela nossos segredos de ódio e de amor, nosso nojo ou
nossa voracidade, nossa mansidão ou nossa violência.
Ao comer nós nos revelamos. E nisto está a diferença entre a comida crescida na
horta e a comprada na feira: na primeira está um pouco de nós mesmos - e ao
sentir seu gosto bom é como se eu estivesse sentindo meu próprio gosto. “Eu
plantei, eu colhi...\" O que está em jogo não é o tomate, a alface - é o
eu que está sendo servido, disfarçado de hortaliça. A refeição fica meio
sacramental. Come-se um pedaço da própria pessoa, que se oferece, de forma
vegetal, num banquete canibal. “Tomai, comei, isto é o meu corpo. Tomai, bebei,
isto é o meu sangue...”
Alegria do encontro
Pois é, horta é algo mágico, erótico, onde a vida cresce e também nós, no que
plantamos. Daí a alegria. E isso é saúde, porque dá vontade de viver. Saúde não
mora no corpo, mas existe entre o corpo e o mundo - é o desejo, o apetite, a
nostalgia, o sentimento de uma fome imensa que nos leva a desejar o mundo
inteiro. Alguém já disse que somos infelizes só porque não podemos comer tudo
aquilo que vemos. Concordo em parte, pois há aqueles que vêem tudo, mas não
desejam nada. Estão doentes, prisioneiros deles mesmos. Saúde: quando o desejo
pulsa forte, cio por coisas amadas, e o corpo vai, em busca do objeto desejado
- a horta podendo ser um pequeno (e delicioso) fragmento dos nossos maiores e
infinitos desejos. O mundo bem poderia ser uma grande horta: canteiros sem fim,
terra fértil, nossas sementes se espalhando, nosso corpo ressuscitando de sua
grande e mortal letargia.
E penso esta coisa insólita: há lições de kama-sutra a serem aprendidas na
horta, no despertar dos sentidos que ela provoca. O caminho da saúde, o caminho
da libertação do corpo para copular com os objetos do desejo (e uso a palavra
copular no seu preciso sentido gramatical de “fazer conexão” e também no
sentido erótico de união entre duas pessoas que se querem e, por isso, se
interpenetram, transgredindo os limites do próprio corpo) passa pelo caminho do
despertamento erótico dos nossos sentidos adormecidos. A capacidade sutil de
distinguir os perfumes, o olhar extasiado que diz, para a planta ou para a
pessoa, não importa: \"Como é bom que você existe!”; o ouvido que tem a
tranqüilidade para morar no silêncio, sem se perturbar; a pele que se deleita
com o vento, com a água, com a terra; e a boca que sente o gosto da coisa como
quem prova um vinho.
Uma horta é um bom lugar para começar. E pra continuar, até acabar. Seria bom
saber que alguém colherá coisas que nós semeamos, depois da nossa partida, e as
plantas continuarão, como um gesto nosso de amor.
(O quarto do mistério, Papirus, 1995)